Estupro, o crime que até a lei oculta

Por: por Marsílea Gombata — publicado 17/06/2016 15h43, Carta Capital

Em 2002, o filme francês Irreversível trouxe às telas uma das cenas mais incômodas da história do cinema: em uma passagem subterrânea na noite de Paris, a personagem de Monica Bellucci volta sozinha de uma festa e cruza com o agressor, que a domina com uma faca, a joga no chão, abafa seus gritos ao tapar a sua boca, rasga sua roupa, a estupra e a espanca, com chutes no nariz e nas costelas e repetidos choques de seu rosto contra o chão. São 11 longos minutos em uma sequência de tensão, repulsa e dor.

Apesar do misto de perplexidade e revolta que a cena de um estupro causa, não se trata de um caso incomum. No Brasil são perto de 527 mil estupros ao ano, segundo o levantamento Estupro no Brasil: Uma radiografia segundo os dados da Saúde, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O crime, no entanto, é um dos mais subnotificados no País: estima-se que apenas 10% dos casos cheguem à polícia. Ou seja, 90% nem sequer são investigados.

No fim de maio, o País voltou a reviver o horror com o caso de uma jovem de 16 anos vítima de estupro coletivo. A tragédia ganhou repercussão porque um dos supostos agressores fez questão de postar um vídeo nas redes sociais e apresentar a adolescente desacordada, como um objeto utilizado e descartado por ele e outros homens presentes no recinto.

As investigações ainda não chegaram a um número certo de agressores, mas a vítima fala em 33 homens – alguns armados com fuzis, outros a violentando, outros a imobilizando em um quarto no Morro da Barão, na Praça Seca, zona oeste do Rio.

“A violência contra a mulher precisa ser entendida como um fenômeno social por duas razões: ela não se manifesta de forma pontual, mas segundo padrões amplamente presentes na sociedade”, observa Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da UnB e organizadora do livro Feminismo e Política: Uma introdução (Boitempo, 2014) ao lado de Luis Felipe Miguel.

“Por meio dele, os homens tornam concreto o entendimento de que têm direito de definir a vida das mulheres, isto é, de que elas não são os sujeitos de suas próprias vidas. O estupro é uma afirmação crua do domínio masculino sobre as mulheres e se impõe a elas como ameaça.”

O crime com a adolescente, que vivia em um apartamento na Taquara com a mãe, o pai, a avó e o filho de 3 anos, repercutiu. O presidente interino, Michel Temer, anunciou medidas vagas sobre políticas para mulheres – como a criação do Núcleo de Proteção à Mulher –, reconheceu que a sociedade brasileira se acanha diante de tais episódios e anunciou como secretária de Políticas para Mulheres Fátima Pelaes, aliás contrária ao aborto, mesmo em casos de estupro. 

Uma semana após o ocorrido, o Senado aprovou projeto de lei que tipifica os crimes de estupro coletivo e de divulgação de imagens desse tipo de violência. A ideia é a pena para o crime de estupro praticado por duas ou mais pessoas ser aumentada de um a dois terços – atualmente, casos com maiores de 18 anos preveem de seis a dez anos de prisão, enquanto com menores varia de oito a 12 anos.

Na esfera local, a investigação começou com o chefe da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), Alessandro Thiers, mas foi transferida para Cristiana Bento, titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima.

A troca deu-se após pedido da defesa da menina de 16 anos, que contou ter sido questionada por Thiers sobre sua versão. Ele perguntou, por exemplo, se a vítima do estupro coletivo tinha o hábito e gostava de fazer sexo em grupo.

Thiers ganhou projeção ao conduzir casos de grandes repercussões nos últimos anos, como a investigação de ações dos black blocs em 2013. No ano seguinte, poucos dias antes da Copa do Mundo, pediu a prisão preventiva de “responsáveis” por incitar violência em protestos, entre eles a advogada Eloisa Samy – a mesma que defendia a jovem de 16 anos até ela entrar para o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, após receber ameaças do tráfico do Morro da Barão. Na terça-feira 7, Thiers foi afastado do comando da DRCI.

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