Homem invisível de Goiânia que “nasceu” aos 66 anos tem sua primeira certidão

Luiz Ribeiro Ramos “nasceu”para a sociedade civil e o poder público na quinta-feira (20) quando obteve, aos 66 anos, o primeiro documento de sua vida, a Certidão de Nascimento

Com um sorriso no rosto e certidão de nascimento em mãos, Luiz Ribeiro Ramos faz planos para o futuro: “Quero casar, antes eu não podia” (Foto: Eduardo Ferreira)

Foi a cena descrita em 1947 no poema “O Bicho”, por Manuel Bandeira, que chamou a atenção do pequeno empresário Silvam Martins Moreira quando viu pela primeira vez, há cerca de 12 anos, aquele homem vagando pela região do bairro Goiânia 2, região Norte da capital goiana. O que não imaginava é que oficialmente, até a quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020, ele não existia para a sociedade e para o poder público. Prestes a completar 67 anos, Luiz Ribeiro Ramos pode finalmente dizer que se tornou um cidadão brasileiro ao conquistar o seu registro de nascimento.

Vasculhando lixos e produtos recicláveis, Luiz chama a atenção na paisagem urbana goianiense por estar sempre acompanhado de sua matilha de cães. É esta a sua família, aquela que ele alimenta com os restos de comida que vai encontrando pelo caminho. “Ele sempre fala que é para os cachorros, mas ele também come”, conta Silvam, a pessoa que há mais de um ano começou a levantar a vida do homem na esperança de oferecer a ele um pouco de dignidade.

Devagar, o pequeno empresário foi se aproximando e ganhando a confiança de Luiz. Passou a observá-lo melhor, a arrancar dele algumas palavras, a tentar descobrir a sua origem. “Parece que ele chegou a morar com outra pessoa há alguns anos, mas aí não deu certo”, arrisca a dizer. A situação daquele homem foi compartilhada por Silvam com outras pessoas do bairro que se mobilizaram para ajudá-lo, mesmo sabendo das dificuldades para driblar sua desconfiança.

Embora tenha vindo ao mundo há quase 67 anos, Luiz “nasceu” para a sociedade civil na quinta-feira, 20, após um esforço de um batalhão de pessoas. Silvam conversou com muita gente até chegar em julho do ano passado à Coordenação de Investigação dos Desaparecidos da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado de Goiás e à Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO). Foi necessário um minucioso trabalho de investigação para que os agentes públicos descobrissem que aquela pessoa jamais teve um documento sequer.

O sorriso banguela, com a certidão de nascimento em mãos, retratou o sentimento do homem acostumado a viver como bicho. “Eu se criei (sic) no mundo”, contou Luiz, numa linguagem que mostra o quanto interage pouco com humanos, ao explicar porque nunca teve uma comprovação de que tinha nascido. As rarefeitas informações resgatadas por Silvam de sua memória danificada completaram o quebra-cabeça capaz de dar um ponto de partida rumo à dignidade.

Coordenadora da Comissão de Investigação de Desaparecidos da SSP, Simone de Jesus conta que estava de férias quando soube da história, mesmo assim agilizou para que tivesse início o trabalho de investigação. Coletadas as impressões digitais de Luiz verificou-se que o nome mencionado por ele como sendo seu e as marcas pessoais eram inexistentes no cadastro de pessoas físicas de Goiás. Procura semelhante foi realizada em Minas Gerais, mas a resposta também foi negativa. Luiz afirma ter nascido em Uberaba no dia 23 de junho de 1953.

Diante disso, Simone acionou a DPE-GO na esperança de que algo pudesse ser feito para que aquela pessoa fosse inserida à sociedade e pudesse garantir seus direitos e benefícios sociais. “Quando estive no lugar que ele mora a primeira coisa que veio à minha cabeça foi o poema “O Bicho”, de Manuel Bandeira”, contou ela. O caso caiu nas mãos do defensor público Thiago Ordones Rêgo Bicalho que decidiu requerer o registro tardio de nascimento de Luiz baseado no Provimento 28 do Conselho Nacional de Justiça em vigor desde fevereiro de 2013. “Com a certidão ele vira cidadão. Hoje, para ter dignidade, ele precisa de ajuda.”

Embora Luiz dissesse que seus pais são Maria Rosa Pedrina e José Ribeiro, na certidão de nascimento que o transformou num cidadão não consta a filiação, apenas nome, o local e a data de nascimento como prevê o Provimento 28 do CNJ. Na quinta-feira, logo após retirar sua Certidão de Nascimento, Luiz foi levado ao Instituto de Identificação da Polícia Civil para obter a Carteira de Identidade. Nos próximos dias vai tirar também o CPF. “Queremos garantir algum tipo de benefício social para ele”, explica o defensor público Tiago Ordones Bicalho.
Diante do tabelião Mateus Silva, a pessoa simples, de mãos calejadas, pele maltratada e audição prejudicada, disse coisas desconexas. Foram os laudos apresentados pelos agentes públicos que garantiram a ele o direito de avançar etapas para que deixe no passado a condição de bicho e se torne, efetivamente, um homem.

Provimento 28 do CNJ

O Provimento nº 28 do Conselho Nacional de Justiça regulamenta o registro tardio de nascimento feito fora do prazo legal previsto na Lei de Registros Públicos (Lei n. 6.015/1973). Esta lei determina que o registro seja feito no lugar onde ocorreu o nascimento ou no lugar de residência dos pais, em até 15 dias após o parto, ou, quando se tratar de lugares distantes – mais de 30 quilômetros da sede do cartório –, em até três meses.

Pelo Provimento 28, o requerimento de registro tardio pode ser feito diretamente pelos Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais do lugar de residência da pessoa interessada e deve ser assinado por duas testemunhas. Qualquer pessoa pode requerer seu registro de nascimento, mesmo que desconheça os nomes dos pais, dos avós ou que não seja possível preencher os requisitos à confirmação da paternidade ou maternidade, como a naturalidade, profissão e residência atual dos pais.

Desde que o Provimento 28 entrou em vigor, conforme o tabelião Mateus Silva, apenas uma pessoa apareceu no cartório há cerca de um mês para requerer o registro tardio, mas numa situação diferente da de Luiz. Embora, sem documentos e com mais de 60 anos, a pessoa tinha uma certidão de batismo.

Planos nunca fizeram parte da vida de Luiz. A cada amanhecer em meio aos seus animais, havia para ele motivo de sorrir. Sair de casa acompanhado dos fiéis escudeiros, recolher materiais recicláveis nunca vendidos e restos de comida desprezados por quem pode comprar, sempre pareceu a ele o cotidiano mais trivial. Agora, com documentos e, quem sabe, um benefício social, ele sorri e diz: “Quero casar, antes eu não podia”.

“Meus irmãos estão no mundo. Nunca mais tive notícias”

Talvez tenha sido a primeira vez que Luiz Ribeiro Ramos pisou num lugar “fresco e bão (sic)”. Sentado ereto numa cadeira do Cartório Silva, ele parecia temer fazer algo errado num ambiente até então desconhecido, mas não deixou de exclamar a sensação agradável proporcionada pelo ar condicionado. Até ali, as ruas de Goiânia e uns poucos metros quadrados tomados por lixo reciclável, nas proximidades da Avenida Perimetral Norte onde sobrevive na companhia de 16 cães, eram os cenários familiares.

Ele conta que nasceu em Uberaba de pais “amigados” que brigaram, “cada um foi para um lado”, deixando para trás três filhos: Noé, Antônio e Luiz. O pai trabalhava em pequenos sítios e em um deles, aos 9 anos, Luiz levou “um coice de um animal” que provocou uma cicatriz na testa. É a única lembrança concreta de um tempo que ele julgou ser gente. Depois, a família se desfez. “Nunca mais tive notícias de ninguém. Meus irmãos também estão no mundo”, diz.

Luiz imagina que chegou à região metropolitana de Goiânia no início dos anos de 1970. Trabalhou “de enxada” em Aparecida de Goiânia, “amigou” com uma mulher com quem teve uma filha e nunca mais viu e depois passou a perambular, se encostando em locais insalubres. O último, onde é monitorado por Silvam Martins Moreira e a turma da Pastoral Social da Paróquia Nossa Senhora do Caminho, do bairro Goiânia 2, impressiona pela quantidade de lixo e umidade. Há sinais evidentes de que trata-se de uma pessoa acumuladora.

Não há uma casa, nem mesmo um barraco. Para se abrigar da inclemência do sol ou da chuva foi ajustando uma coisa aqui, outra ali, mas com cobertura suficiente para não deixar nenhum de seus cães desprotegidos. Há algum tempo há um esforço capitaneado por Silvam para ajudar Luiz. Através de um abaixo-assinado e uma rifa foram arrecadados mais de R$ 2 mil na região com o objetivo de construir um barraco. “Ele não aceitou. O maior medo dele é ser retirado dali”, explica Silvam. “Eu possuei (sic) daquela chácara”, diz Luiz. Na verdade, são poucos metros, ao lado de nascentes, numa área de preservação, onde ele plantou pés de bananas e de goiabas.

O dinheiro arrecadado foi entregue à Pastoral Social que, mensalmente, faz uma cesta de alimentos para Luiz.

De vez em quando, alguém do Programa da Saúde da Família passa pelo canto de Luiz para conferir sua saúde. Ele nunca esteve num hospital. “Se apurar muito, eu vou”, diz ele num sorriso aberto. Também nunca foi à escola. O pouco que consegue ler e escrever, como assinar o nome, aprendeu sozinho. “Estudei meio ano. Todas as coisas precisam de estudo.”

Animais 

 

Luiz Ribeiro Ramos ao lado de seus cães, em um abrigo improvisão no Goiânia 2, onde vive há algum tempo (Foto: André Costa)

“O que mais me impressiona é a forma como ele cuida dos cachorros”, aponta Luceny Santos, vizinha de Luiz há 12 anos. “Ele coloca comida na boca de cada um com o garfo.” A dona de casa ressalta que o ajuda como pode e que sua família já tentou levantar quatro paredes para dar conforto ao vizinho, “mas ele não quer de jeito nenhum”.

De acordo com Silvam, muita gente acredita que Luiz é agressivo, mas isso só ocorre quando maltratam seus animais. “Do mesmo jeito os cachorros ficam irritados quando mexem com ele”, comentou. Por onde percorre, Luiz faz questão da companhia de seus bichos guardiões.

Luiz foi reunindo os cães em suas andanças. Penalizado com animais machucados, leva para seu canto e cuida com carinho. Ele chegou a ter uma cabra da qual não esquece. “Criei ela na mamadeira. Ela subia no meu colo, fiquei sendo a mãe. Depois, passei a dar comida de rua, mas aí me roubaram.” Foi na véspera do Natal há dois anos. A cabra saiu para pastar nas proximidades e nunca mais foi vista. “Ele chorou feito criança”, lembra a vizinha Luceny.

 

Fonte: Jornal O Popular.

 

 

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